A história da história preta
A história contada é realmente a história do povo negro? Diego Panhussatti, militante e secretário de Juventude do PT Tocantins, reflete sobre a história preta
A hegemonia, em seu conceito estrito, é a capacidade de estruturar no imaginário de um indivíduo ou de um coletivo a ideia de algo soberano e inquestionável. É uma influência preponderante exercida sobre essas pessoas, que cria barreiras para questionar essa retórica. Quando um grupo tem como projeto dominante sobre algum território ou pessoas, diversas ideias, muitas vezes com narrativas esdrúxulas e inverídicas, são lançadas como meio de alimentar essa narrativa. Com o tempo, essa narrativa se torna uma verdade difícil de ser combatida ou questionada. Um exemplo disso é a famosa frase "uma mentira repetida muitas vezes, torna-se verdade", que se comprovou durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro que alimentava uma multidão de seguidores com informações falsas, dentre elas a de que a Floresta Amazônica não pegava fogo por ser muito úmida ou de que a vacina da Covid-19 poderia infectar as pessoas com o vírus do HIV.
Tal estratégia de alienação por meio das mentiras não é recente e há muitos anos é utilizada como forma de dominar grupos e conter revoltas populares. Um exemplo famoso é o mito da democracia racial, uma suposta teoria de que no Brasil não existe racismo e que os acessos e direitos são garantidos de forma igualitária para todos os grupos étnicos que vivem aqui. No entanto, dados não se sustenta essa narrativa.
Ocorre que, para os brancos europeus exercerem sua dominância sobre as populações africanas e ameríndias, diversas falsas narrativas foram constituídas e fortemente propagadas. Essas narrativas serviram como uma cortina de fumaça, desviando o olhar das atrocidades cometidas pelos opressores e naturalizando as barbáries. Os crimes cometidos pelos brancos, desde o surgimento do capitalismo moderno até os dias atuais, pouco se modificaram, perpetuando os ideais de um grupo mais evoluído e subalternizando outros no imaginário das pessoas e, consequentemente, impactando ações práticas do dia a dia da sociedade.
São esses ideais que condicionam o padrão do belo e do feio, o que é sagrado e o que é profano, o que é considerado inteligente por natureza e o que é destinado à ignorância. Isso negligencia a verdade e limita o desenvolvimento e o potencial humano na evolução das relações sociais harmoniosas. Ocorre que, para que essas narrativas se mantenham sempre em evidência, os cursos da história não são contados como realmente foram os fatos. Afinal, o papel dos registros históricos é consagrar o que já ocorreu para determinar as ações do presente e do futuro. Isso significa dizer que a história que nos é apresentada atualmente está enraizada em informações falsas, com o objetivo de manter ideais racistas.
Isso significa dizer que os brancos foram responsáveis por contar a história da população negra. Aqueles que torturavam, violentavam, sequestravam e perseguiram ainda tinham (e têm) o poder de ditar o que seria ou não divulgado. Um exemplo disso é o perfil de trabalhador atribuído aos brancos e o estereótipo de preguiçoso atribuído aos negros, quando na realidade quem trabalhava era o negro e o branco era aquele que explorava os outros. Ocorre que, essas narrativas são historicamente endossadas pelos descendentes dos exploradores, hoje chamada de branquitude (pessoas brancas que consciente ou inconscientemente buscam manter os privilégios decorrentes da exploração escravocrata e a manutenção desse status quo), ainda permeiam plenamente o século 21, reproduzindo antigas práticas sob novas vestimentas, como percebemos no ideário de que os sulistas (maioria de brancos) são muito trabalhadores e que baianos ( maioria de negros) são preguiçosos.
Outro exemplo é de que até hoje existe uma linguagem, inclusive pedagógica, que incentiva a idéia de "descobrimento" do Brasil, desviando o foco da brutal invasão que ocorreu por parte dos portugueses e ignorando a presença dos povos indígenas que já habitavam essas terras. Além disso, há a idéia equivocada de que os negros são mais resistentes fisicamente e, portanto, suportam melhor a exploração física. Essas narrativas contribuem para a perpetuação de práticas racistas que são separatistas e excluem os direitos sociais da população negra.
Essa cortina criada para ocultar a verdade impede que as revoltas ocorram, permitindo que os racistas continuem agindo livremente, enquanto a população negra permanece aprisionada nas amarras contemporâneas do sistema escravocrata.
Porém, existe um movimento chamado decolonização da mente e da história, que busca desvendar as falácias e contar a verdadeira história do Brasil e das relações estabelecidas aqui, sob a perspectiva do povo negro. É cada vez mais incentivado que pessoas negras produzam conteúdo crítico-científico para compartilhar suas experiências e trazer novas perspectivas sobre os padrões brancos profundamente enraizados em diversas áreas, como o sistema de justiça, que segue uma lógica que nos afeta, os métodos e abordagens utilizados pela psicologia, que têm uma base teórica eurocêntrica, e até mesmo os valores religiosos, já que nascemos subordinados ao cristianismo e raramente é dada a possibilidade de considerar uma religião de matriz africana.
Tudo isso me traz à memória o canto " Histórias Para Ninar Gente Grande ", samba-enredo da Mangueira em 2019, que diz: "Brasil, meu dengo, a Mangueira chegou, com versos que o livro apagou, desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento, tem sangue retinto pisado, atrás do herói emoldurado, mulheres, tamoios, mulatos, eu quero um país que não está no retrato". Essa letra poderosa ressalta a importância de contar a história verdadeira do Brasil, que muitas vezes é omitida ou distorcida. Ela destaca que desde a chegada dos portugueses em 1500, houve mais invasão do que descobrimento, e que há uma história de sangue e resistência negra que é apagada e negligenciada. É um chamado para reconhecer e valorizar a história e as contribuições do povo negro.